LISA E O
VELHO DA RUA MILMMS
Uma
Apresentação:
Vejam, aquela é Lisa Llibre chapinhando na lama lodosa
da calçada da velha Rua Milmms, lutando contra o frio enregelante para chegar
em casa, o casaco medíocre de algodão puído colado precariamente ao corpo
magro, a mochila escolar pendendo do ombro esquerdo, cinzenta, e um cachecol
fazendo rima com a toca de lã igualmente gasta, que era velha o bastante para
não esquentar as pobres orelhas geladas.
Lisa está voltando da escola, como me lembro de vê-la
todos os fins de tarde neste mesmo horário. Olhem, acabou de passar pela janela
embaçada do n°. 5 e endereçou um adeusinho e um sorriso infantil a mim, certa
de que no dia seguinte irá tomar uma soberba xícara de chocolate quente em
minha cozinha mal-assombrada.
– Boa-noite, Lisa.
Admiro o breve rodopiar da bruma sobre as calhas por
mais alguns segundos e volto para o abrigo de minha lareira, cônscio de que a
jornada de Lisa ainda não terminara.
Era tudo uma lembrança.
† † †
Uma Garota
Valorosa:
Essa garotinha de sobrenome e proveniência
medianamente estranhos de que estamos falando, ainda tinha que descer uma longa
ladeira e depois subir outra igualmente íngreme antes de finalmente se abrigar
em casa.
Aliás, uma casa realmente deprimente: o último edifício
da Rua Milmms, a residência dos Hemersonn – pais de criação de nossa heroína
(oh, sim, Lisa mostrar-se-á uma verdadeira heroína muito em breve) –, era
equilibrada no alto da ladeira, ao lado de uma fétida pilha de lixo; as janelas
encarvoadas e quebradas, prova contundente de que a família era realmente odiada pelas crianças encapetadas do
bairro e suas respectivas mães, faziam coro com o telhado desaparelhado e
decadente que, por sua vez, refletia a palidez acinzentada das paredes e dos
penachos de grama ressequida que compunham o jardim.
Nas poucas vezes em que visitei o casa dos Hemersonn,
as únicas coisas que presenciei foram, a grosso modo, o frio, as cinzas e o
escuro – isso sem falar na fome. Esta, assoladora e presente.
Embora desajeitada e estranha (as mães e avós da rua
sempre proibiam que seus filhos e netos se aproximassem da “garota loirinha e
corcunda” do n°. 13), Lisa era uma criança realmente adorável. É verdade que
era canhota, e isso não era nada bom para um velho supersticioso como eu, mas,
ainda assim, tinha seu verdadeiro valor.
Isso porque Lisa Llibre sabia ler – em verdade, é
possível que, na época, Lisa fosse a única garota
que soubesse ler naquela região da cidade.
Amava a leitura como se fosse uma entidade viva e
reverberante; como se fosse um irmãozinho, ou um amiguinho seu. E mais que a
leitura, amava seus livros.
Sim, Lisa tinha livros: muitos deles. Embora, na época
de que estamos falando, ainda não tivesse adquirido sequer o primeiro.
E foi ela que, nos últimos anos antes de minha morte,
me mostrou um outro mundo – o mundo que um velho sobrevivente da guerra ainda
não conhecia.
Sentada sobre meus joelhos artríticos, na velha
poltrona de xintz, Lisa me mostrava reinos e seres encantados. As pequeninas
fadas e elfos a maravilhavam, ao passo que as feiticeiras malvadas e feias,
munidas com vassouras e caldeirões mágicos, a deixavam mortificada de medo.
Lisa Llibre lia para mim.
E foi a partir de sua voz que eu conheci as múmias do
Egito e o rio Ganges, na Índia, ao mesmo tempo em que desbravava, com
destemidos cavaleiros, territórios míticos, outrora inventados.
Tudo o que a pobre garota me pedia era que eu lhe
preparasse uma xícara de chocolate bem quente – e cheia –, antes de começarmos
uma nova história. Na cozinha cavernosa e escura, Lisa jogava o cabelo
louro-sujo para trás do tubérculo que lhe atrofiava as costas e se debruçava
sobre a mesa. Sobre a comida.
Hoje penso que a pobrezinha usava toda aquela situação
como simples desculpa para abocanhar algo. Como já lhes disse (e peço perdão ao
leitor caso esteja sendo repetitivo em demasia), tudo o que vi na residência
dos Hemersonn foi frio e fome – fome assoladora e presente.
Em uma de suas muitas visitas à minha casa, Lisa
revelou-me que, de fato, o lugar mais confortável e acolhedor daquele lugar era
o porão.
Era lá que ela se refugiava. Oculta sob camadas e mais
camadas de lençóis velhos a guisa de tenda, a garotinha lia suas histórias.
E se permitia sonhar.
† † †
O Primeiro
Livro:
Às vezes os livros eram da biblioteca. Todavia, um
deles fui eu que lhe dei.
Um excepcionalmente especial.
O repertório de histórias encantadas de Lisa estava
acabando, de modo que, ao vê-la voltando para casa em mais um fim de tarde de
junho, com as narinas avermelhadas e a corcunda congelada, convidei-a a entrar.
O presente a esperava sobre a mesa nodosa da cozinha.
Capa de couro vermelha mole e desbotada, com uma
fivela dourada servindo de fecho. Páginas amareladas recendendo a mofo.
Caligrafia do título preta e inclinada. Manuscrita.
Lisa não acreditou que aquilo era para ela. Um
presente, imagine! Perguntou o que eu iria querer em troca. Sabina a
havia advertido contra velhos tarados e golpistas. A garota achava que saberia
se defender – se precisasse.
Voltou para casa mais contente naquele dia. O sorriso
que endereçou a mim do outro lado da janela não foi mais um reflexo do
conformismo. Ela estava realmente
feliz. Ganhara seu primeiro livro. O primeiro de muitos. Aquele que mudaria
para sempre a sua vida...
Não contei a ela como adquiri o livro, naturalmente.
Eu não o tinha trocado por dinheiro, como as pessoas comuns geralmente fazem.
Mas eu não era uma pessoa comum.
Eu era Wagner Abucater, veterano de guerra.
† † †
Uma Menina
Fiel e Um Péssimo Fritador de Ovos:
Quando Lisa bateu na porta enodoada de minha
residência, naquele sábado de 1961, eu já sabia a razão da visita.
O livro estava fortemente preso sob seu braço
raquítico. A fivela da capa brilhava para mim como mísseis sendo atirados
contra costas virgens. Um zumbido surdo. Pausa. E depois destruição.
– Bom-dia, Lisa – cumprimentei-a como sempre fazia.
Ela vinha sempre aos sábados. Era quando não tinha
aula.
– Veio me contar uma nova história? – perguntei,
enquanto colocava o leite para esquentar no fogão incinerado. O móvel doméstico
já havia entrado em combustão duas vezes anteriormente, enquanto eu tentava
fritar ovos.
Pausa para nota: Nunca soube fritar ovos!
Lisa continuou silenciosa, a um canto. Levando em
consideração esse hábito seu, é possível afirmar que seria uma boa soldado. Aproximei-me
dela e desferi-lhe um peteleco no nariz diminuto com dedos rugosos. Consegui
despregar-lhe um sorriso.
Foi então que ouvi o que jamais esperara em nenhuma de
suas visitas.
– Hoje, eu
quero ouvir uma história!
Olhei-a por um breve momento.
Eu só conhecia uma...
A xícara de chocolate numa das mãos, Lisa levou a
outra até o meu joelho estagnado.
– Eu senti! Eu senti! – gritou de admiração seguida de
assombro. – É tão estranho! E
durinho. Parece uma pedrinha. Sabe, daquelas que a gente encontra perto do rio.
– É uma bala, Lisa – segredei-lhe, abaixando a voz
para parecer mais assustador.
Contei-lhe dos tempos que tinha combatido na Primeira
Guerra Mundial. De tudo que vira (bem, de quase tudo – não queria assustar a
menina), e dos sons que ouvira. Ah, aqueles sons. À noite, quando me deito (não
para dormir, obviamente), ainda consigo ouvir os zumbidos na minha cabeça –
juntamente com o grito de órfãos perdidos e mães sem filhos.
– É por isso que o senhor tem só a metade do nariz? –
perguntou-me ela, sorvendo chocolate quente, o dedinho levantado graciosamente.
– Sim – ciciei numa voz baixa e afunilada.
A garota pousou a xícara sobre o pires, no braço torto
da poltrona, antes de apalpar o que restara de um nariz destruído pelos
estilhaços de uma bomba. Era a terceira vez que Lisa fazia isso. E em todas as
três eu pude ver um certo ar de cumplicidade em seu sorriso.
Eu sabia como era conhecido na rua. Como as crianças
me chamavam. E ela experimentava a mesma sensação que eu, também. Numa
quinta-feira modorrenta de dezembro do ano anterior, Lisa esmurrara minha
porta, chorando. Estava coberta do que outrora foram ovos chocos, urina e cocô.
Disse que alguns colegas da escola tinham feito aquilo. Que a haviam
surpreendido numa esquina sem movimento...
Afirmou-me, enquanto eu tentava tirar o grosso da
sujeira, que a cara de nojo que eles tinham feito ao olhar para a corcunda dela
era pior que todo o resto. Não são muitas as crianças de oito anos que carregam
um pequeno morrote sobre as costas por aí, para onde quer que vão.
– Sabina vai me matar! – lamentara-se tristonha, antes
de ir embora.
O odor pútrido continuou azedando a minha cozinha
pelas duas semanas seguintes.
Mas valeu a pena: a garota não estava mais chorando,
quando saiu dali. Pelo menos não da mesma forma. Os olhos mareados eram por
causa do mau-cheiro.
– Hmm, bem... – disse. – Já contei minha história.
Agora é a vez da sua.
Quando disse isso, Lisa desceu do meu joelho bom e
escorregou para fora da poltrona desbotada. Observei, não pela última vez, como
seu corpo parecia pequenino em contraste com a parede ao fundo.
– Parece aflita.
Lisa ensaiou um sorriso despreocupado.
– Ah, não. É que estive pensando em algo.
– Conte-me!
– Os milagres existem, não é? – perguntou
inesperadamente.
Eu nunca tinha debatido “assuntos profundos” com a
criança Llibre até aquele momento, de modo que é imaginável o quanto fiquei
surpreso.
Gaguejei. Limpei a garganta três vezes, tentando tomar
ar. Cocei os fiapos de cabelo ralo que sobravam dos lados de minha cabeça. E
finalmente disse:
– Sim. Acho que existem. É isso que os padres e
pastores afirmam, não é?
Pausa para nota: A família de Lisa era protestante. Não acho que isso seja realmente importante, algo
que deva ser obrigatoriamente relatado; contudo, é melhor pecar pelo excesso do
que pela omissão.
– Você não acredita – vomitou ela, e aquelas palavras
foram como mil bofetadas para mim.
Pensei ter presenciado o primeiro comentário maldoso
de Lisa. E isso seria absolutamente normal. Afinal de contas, essa nossa amiguinha
sutil faz parte da condição humana: a maldade.
Estava enganado.
Respirei fundo mais uma vez. Eu não me considerava
propriamente um ateu. Só não estava em condições de acreditar em Deus naquela
época, ou em Alá, Buda, qualquer divindade que fosse.
– Eu acredito – tornou ela, os olhos serenos espiando
o poço profundo de minha alma. – E considero o senhor como um. Sobreviveu à
Grande Guerra. Tem uma bala alojada no joelho e ainda assim consegue andar...
mancando. Perdeu metade do nariz, é verdade, mas aqueles estilhaços poderiam
ter atingido um olho seu. Ou os dois...
Parou de falar hesitante, e o silêncio procedente à
voz nasalada de Lisa pareceu-me sepulcral. Coçou a ponta do nariz,
ingenuamente.
– Você ouviu isso na igreja, Lisa.
Bebericou o chocolate por alguns segundos, silente.
– Não. Na aula dominical eu aprendi que fé é crer
naquilo que não podemos ver, tocar ou sentir. Você não se enquadra nisso. É
diferente.
Pensei em Magda. Em Pedro. Em Lúcia e em Nuno. Decididamente,
eles não faziam parte de um milagre, embora eu não pudesse vê-los, tocá-los ou
senti-los novamente – ainda.
– Só um milagre pode me ajudar agora, Seu Wagner –
disse ela. E vi que gotículas cristalinas se formavam nas bordas de seus olhos.
– Por isso, os milagres têm que
existir. Eles têm.
– Lis, querida, acho que já está ficando tarde. Seus
pais ficarão preocupados com você – falei clara e pausadamente, os olhos
marejados. – Acho que é melhor você ir andando. Já terminou seu chocolate? –
tomei a xícara de suas mãos. – Amanhã você volta, sim?
Ela continuou parada ali, evidenciando sua pequenez.
Um galho bateu na vidraça de uma janela lá de cima, em
algum lugar.
Uma lágrima atravessou um rosto jovem.
O cuco badalou indolentemente.
– Lisa, vá embora!
Passos.
Ouvi a porta bater e depois tremer, no hall de
entrada.
Eu não sabia que Lisa tentava me pedir ajuda.