domingo, 15 de setembro de 2013

Países/Agosto de 2013

Países/Agosto de 2013

       Sim, estamos atrasados, vindos de outros tempos mas sempre no horário, muito prazer, nosso nome é otário. Países foi a temática de agosto, quaisquer deles, reais ou imaginarios. Com isto recebemos 4 textos, de quatro velhos conhecidos.
       O primeiro deles vem em formatos de cartas, enviadas diretamente da índia, "Cartas para alguém", de Vitor Vallombroso. Depois disso as conjecturas sobre um Brasil que também é nosso velho conhecido, com todas suas mazelas, de Huirian Suzin, "Meu Brasil Brasileiro".
        Depois disso, vem o Jardim Morada e a Arvore Anfitriã, mais uma participação do doce de chuchu de goiás, Daniel Henrique. E, por ultimo, atrasada, mas  ainda assim importante, vem "Sobre Mapas, Fantasmas e Veneza" da nossa querida Mara Regina.
        Lembrem-se sempre de curtir a página e seguir o blog, e fiquem a vontade para indicar textos e o projeto para amigos.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Do Jardim Morada e Da Árvore Anfitriã

Do Jardim Morada e Da Árvore Anfitriã

Daniel Henrique M. Silva



Pelas vias tortuosas e cobertas de pedras lisas ela caminhava, as libélulas, borboletas, bétulas e urtigas lhe fazendo companhia; o céu azul acima indicava-lhe o caminho. Tudo era cheio de vida e luz naquele jardim esquecido pela ganância da humanidade, lugar onde a magia encontrava sua fonte e as criaturas podiam se achegar, repletas de inspiração, para escrever suas poesias.
Os vagalumes vicejavam por entre as roseiras gotejantes, e os beija-flores abanavam suas asas um sem-número de vezes naquela explosão de cor e pólen, encontrando alimento e existência na energia que os rodeava. O ar era perfumado e calmo, como o tempo que parece congelado num sonho esquecido, onde as feições parecem borradas e as ações fugidias, quando velhos conhecidos do passado retornam, bafejando palavras sussurrantes, ininteligíveis.
Montanhas altas, de ferro e pico nevado, circundavam aquele lugar atemporal, no qual as leis naturais não faziam prisioneiros e onde a regra da morte encontrava sua exceção. A sempre-viva Mãe distribuía seus grãos entre seus muitos filhos e esperava que eles crescessem e se multiplicassem, numa sucessão infindável de reprodução.
Plantas. Animais. Humanos. Elfos. E seres naturais. Ali, todos encontravam um último-primeiro lugar de paz.
O reino mítico. O jardim encantado. O paraíso desvelado.
Aquele era o lugar no qual todos se sentiam em casa. Pura e genuinamente. E onde encontravam a parte de si pela qual haviam passado suas vidas mortais inteiras procurando. O eu.
Safira, diamante, esmeralda e ônix; de toda sorte de pedras preciosas os muitos caminhos que levavam àquele recôndito eram cobertos. E era a partir do encanto pelo brilho que os filhos de todas as eras se deslumbravam, e, cansados, começavam a trilhar a rota que as levaria rumo ao seu primeiro encontro. Seu derradeiro altar e sacrifício: para entrar no jardim, porém, era necessário que se deixasse tudo para trás, toda sua vida pregressa, suas conquistas, seus valores, para finalmente, despido, encontrar o Lugar Sacro, a Nascente Inextinguível, os Portões do Lar.
Maaylän, outrora Carmem, acabara de chegar, e como era comum, abandonara tudo aquilo que recebera em seu velho mundo – inclusive seu próprio nome. Ela se banqueteava com a visão de tudo o que seus novos olhos, cor-de-chocolate-quente, podiam abarcar: as flores do jardim, multicoloridas, que murmuravam coisas umas às outras, e se perdiam em gracejos e risinhos; a pluralidade de dentes-de-leão sendo levadas pelo vento e infestando o ar em sua dança de salão incessante; as dezenas de luzes harmoniosas – espíritos de energia e pura luz – que passeavam calmamente por entre as flores, despregando matizes de arco-íris e bolas-de-sabão na atmosfera fresca do jardim; as ninfas despidas banhando nos regatos, com suas orelhas pontudas e seus cabelos verdes-lilases-vermelhos-caramelos flutuando nas águas frescas ao sabor das muitas marolas, acompanhadas por peixes de todas as cores que exibiam corações, com o brilho das luzes de neon,  pulsando através de escamas peroladas.
Por mais que Maaylän caminhasse, ela parecia nunca encontrar o fim do Jardim. Todos os caminhos pareciam levar para um único lugar: seu centro; e todos que cruzavam seus passos pareciam muito felizes, como se nunca tivessem cogitado a possibilidade de deixar aquele lugar, e como se, assim como ela, também o estivessem deslumbrando pela primeira vez. Ali, homens, fadas e lobos dançavam cantilenas de roda, de mãos dadas, escondendo-se por entre as árvores; casais apaixonados passeavam pela vastidão inominável, recitando seu novo amor em sarais eternos de dedicação e presteza; e humanos, outrora temerosos, acariciavam bestas-feras, híbridos de águia e leão, serpente e albatroz, com toques de ternura.
Maaylän percebia a existência de algo diferente no ar. Algo que, assim como todas as criaturas vivas em volta, pulsava e consumia força – mas que, ao mesmo tempo, dava energia ao Todo. Estava impregnado em tudo, e podia ser sentido de muitas formas; através dos sons das cascatas borbulhantes; do perfume das diversas margaridas-do-brejo e dríades; do sabor do ar que perpassava línguas e narinas; através, até mesmo, do vislumbre de formas etéreas que flutuavam no tempo-espaço como dançarinos feitos de véu acetinado; e do toque de cada forma de vida que era semelhante a uma explosão de sentimentos tão ancestrais quanto à idade daquele lugar.
Mais velha, portanto, que a idade da própria Terra.
E foi enquanto experimentava aquelas sensações tão novas e ao mesmo tempo tão conhecidas, que Maaylän cruzou seus olhos com os dele – verdes como as pedras limosas que brotam fundo na terra, filhas do fogo e da matéria. Suas feições eram ao mesmo tempo selvagens e gentis. Chifres de cervo polidos adornavam-lhe a fronte altiva.
Ele sorria para ela, e seu sorriso era como o descortinar de uma janela que traz luz a uma sala vazia: trouxe o toque sutil do calor e da vida ao seu coração adormecido.
Ela descobriu, pela primeira vez, o significado de um sentimento que até anteriormente era apenas uma palavra, um nome usado para expressar verdades que, em seu mundo, não passavam de mentiras, ou partes de uma verdade ínfima, e que não era tão linda quanto aquilo que agora ela experimentava.
Seu coração explodiu numa miríade de cores, tomando a forma de um buquê de rosas ao desabrochar.
“Venha”, sussurrou ele por entre os sicomoros e as faias. “Pegue minha mão.”
E ela o obedeceu – agarrando seus dedos longos e sentindo uma parte de sua própria almessência tocando-lhe através da pele do outro – afinal de contas, por que não o faria?
Os dois caminharam por entre as árvores durante muito tempo, conversando sem proferir uma única palavra, trocando juras de amor com olhares. Ludhavor era talentoso, pertencente a uma antiga espécie de criaturas mágicas da natureza, e filho de todas as criaturas da Terra. Tinha intimidade com tudo o que habitava aquele jardim e gostava de entreter Maaylän fazendo as flores abrirem e fecharem suas pétalas, ressoando finos toques de sino, e escrevendo versos lúdicos em caligrafia belíssima e inclinada, nos caules esguios de tulipas coloridas, em nuvens repolhudas no céu, em seus fios de cabelo cor-de-ouro.
Saeron, um enorme lobo albino de olhos azuis como pingentes de gelo, era sua eterna companhia. Seguia o casal abanando o rabo de um lado para o outro. Um guardião em terras protegidas.
O passar do tempo não era contado com os ponteiros do relógio naquele jardim, uma vez que nada ali satisfazia as leis do mundo carnal. Era possível que tivessem se passado dias, meses e anos desde aquela primeira aproximação, e que tal caminhada tivesse se prolongando por uma eternidade; mesmo assim Maaylän não percebia qualquer mudança no cruzar das estações. Já era parte daquele lugar, parte de Ludhavor, seu amante.
E, antes que se desse conta de que estavam seguindo um dos muitos caminhos que levavam ao centro do jardim, Maaylän se viu diante de uma gigantesca árvore, cuja copadeira enchia toda a área à volta, espalhando-se por cima de tudo e de todos como o céu tempestuoso na forma de galhos nodosos e folhas crepitantes, uma coroa de graça; suas gigantescas raízes percorriam todo o caminho à volta do tronco por dentro e fora da terra, como um dragão marinho envolvido em um duelo.
Maaylän, Ludhavor e Saeron, assim como dezenas de outras criaturas, insetos e flores curiosas, encaravam a grande árvore, sua Anfitriã. E a Grande Árvore falou-lhes, sua copadeira reverberando. Congratulou-os por terem chegado a tempo para a Grande Festa, e deu as boas-vindas a todos e a cada um separadamente. E todos eram recém chegados, pois naquele lugar não havia contagem de tempo, e tudo era muito velho e muito novo de igual modo; tendo eles acabado de chegar ali e, mesmo assim, tendo morado ali desde o princípio dos tempos e para sempre.
Sua voz era como o ranger de galhos numa ventania, como o grito estridente de águias perscrutando as montanhas no céu ventanoso, e como o gorgolejar de águas profundas e incessantes, em lugares profundos, frios e esquecidos: mítica, profunda e muito, muito velha. E todos se colocaram de joelhos, mas Anfitriã pediu para que se levantassem, dizendo-lhes que era tempo de celebração, e que todos estavam prontos para ela.
“Mas chorem por aqueles cujos seus corações já não se lembram mais, meus filhos pequeninos”, disse ela com sua voz de galhada, tronco e raiz – uma voz que podia ser ouvida apenas pelos ouvidos do coração. “Aqueles que, embora muito quisessem, nunca chegarão a esse lugar. Aqueles que se perderam, e estão agora diante de outro jardim e outro Anfitrião”.
Ao som dessas palavras todos se encheram de medo e trevas, mas as nesgas de escuridão e tristeza logo foram varridas para longe de seus corações, visto que Anfitriã lhes convidou para dar início ao Grande Banquete, e à Grande Celebração. E todos começaram a cantar, dançar e se alegrar, pulando ao redor da Árvore Ancestral de mãos dadas, saudando sua sabedoria milenar e sua persistência durante todas as eras da Existência.
E aquele foi um grande dia, no qual homens, animais, plantas e criaturas de todas as lendas, desde o fauno das florestas à fênix das longínquas pirâmides, se regozijaram e confraternizaram, vivendo eternamente em harmonia. E de fato esse dia ainda não se acabou e nunca acabará, pois a derradeira festa das nações é aquela que durará para sempre.

O primeiro dia e o último, unidos num único grande evento.

Além deste país imaginario, podem conferir as palpáveis Veneza e Índia, respectivamente de Mara e Vitor.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Julho/Inverno e Guerra

Julho/Inverno e Guerra

          Sejam bem vindos a mais um mês do céu literário! Desta vez, contamos com 5 autores, 7 contos e 2 temas! Sim meus queridos, houve um empate em nossa enquete e graças a isso, esse mês trago a vocês prosas e poesias sobre o inverno, a guerra e outros sobre ambos. Vamos a eles?
           Começaremos pelo Huirian, que desta vez nos trouxe três espetaculares textos. Vamos começar pelo meu preferido, nele Diones invoca Azrael para tratar da guerra, em uma linguagem quase que mpbistica. Depois, vem Invernos e Invernos que conta com os dois temas, somados com o desenho favorito do autor, "Hora da aventura" e, por ultimo o não menos filosófico Gelo Lunar que trás para nossa realidade a espera e o frio de só mais um homem perdido no espaço.
            No próprio blog do céu, Daniel Henrique faz sua primeira aparição no projeto, trazendo ambos os temas, a guerra vem como uma lembrança sempre presente no duro inverno de Lisa e o velho da rua Milmms. Outra lembrança de guerra é trazida por Vitor Vallombroso, vulgo eu, onde ele fala dos terríveis encontros entre piratas, testemunhados por uma enseada sem nome, e de como sobrevivem objetos graças a  alma de capitão (.De capitão) pirata.
            Mara nos trás os acontecimentos diários em inúmeros lares mundo a fora, uma guerra crua e impressionante. Encerrando o mês, um maravilhoso texto trazido a público por Lucas rodrigues, no ual ele trata da pior sensação, quando o inverno da alma e a estação mais fria do ano resolvem incidir sobre um mesmo pobre homem, com casacos cheirando a Naftalina.

          Não deixem de convidar seus amigos amigos escritores para o grupo, e de curtirem a página, agora mais ativa do ue nunca, trás os textos primeiro até vocês.
         

sexta-feira, 26 de julho de 2013

LISA E O VELHO DA RUA MILMMS - PARTE I

LISA E O VELHO DA RUA MILMMS


PARTE I

Uma Apresentação:

Vejam, aquela é Lisa Llibre chapinhando na lama lodosa da calçada da velha Rua Milmms, lutando contra o frio enregelante para chegar em casa, o casaco medíocre de algodão puído colado precariamente ao corpo magro, a mochila escolar pendendo do ombro esquerdo, cinzenta, e um cachecol fazendo rima com a toca de lã igualmente gasta, que era velha o bastante para não esquentar as pobres orelhas geladas.
Lisa está voltando da escola, como me lembro de vê-la todos os fins de tarde neste mesmo horário. Olhem, acabou de passar pela janela embaçada do n°. 5 e endereçou um adeusinho e um sorriso infantil a mim, certa de que no dia seguinte irá tomar uma soberba xícara de chocolate quente em minha cozinha mal-assombrada.
– Boa-noite, Lisa.
Admiro o breve rodopiar da bruma sobre as calhas por mais alguns segundos e volto para o abrigo de minha lareira, cônscio de que a jornada de Lisa ainda não terminara.

Era tudo uma lembrança.

† † †

Uma Garota Valorosa:
Essa garotinha de sobrenome e proveniência medianamente estranhos de que estamos falando, ainda tinha que descer uma longa ladeira e depois subir outra igualmente íngreme antes de finalmente se abrigar em casa.
Aliás, uma casa realmente deprimente: o último edifício da Rua Milmms, a residência dos Hemersonn – pais de criação de nossa heroína (oh, sim, Lisa mostrar-se-á uma verdadeira heroína muito em breve) –, era equilibrada no alto da ladeira, ao lado de uma fétida pilha de lixo; as janelas encarvoadas e quebradas, prova contundente de que a família era realmente odiada pelas crianças encapetadas do bairro e suas respectivas mães, faziam coro com o telhado desaparelhado e decadente que, por sua vez, refletia a palidez acinzentada das paredes e dos penachos de grama ressequida que compunham o jardim.
Nas poucas vezes em que visitei o casa dos Hemersonn, as únicas coisas que presenciei foram, a grosso modo, o frio, as cinzas e o escuro – isso sem falar na fome. Esta, assoladora e presente.
Embora desajeitada e estranha (as mães e avós da rua sempre proibiam que seus filhos e netos se aproximassem da “garota loirinha e corcunda” do n°. 13), Lisa era uma criança realmente adorável. É verdade que era canhota, e isso não era nada bom para um velho supersticioso como eu, mas, ainda assim, tinha seu verdadeiro valor.
Isso porque Lisa Llibre sabia ler – em verdade, é possível que, na época, Lisa fosse a única garota que soubesse ler naquela região da cidade.
Amava a leitura como se fosse uma entidade viva e reverberante; como se fosse um irmãozinho, ou um amiguinho seu. E mais que a leitura, amava seus livros.
Sim, Lisa tinha livros: muitos deles. Embora, na época de que estamos falando, ainda não tivesse adquirido sequer o primeiro.
E foi ela que, nos últimos anos antes de minha morte, me mostrou um outro mundo – o mundo que um velho sobrevivente da guerra ainda não conhecia.
Sentada sobre meus joelhos artríticos, na velha poltrona de xintz, Lisa me mostrava reinos e seres encantados. As pequeninas fadas e elfos a maravilhavam, ao passo que as feiticeiras malvadas e feias, munidas com vassouras e caldeirões mágicos, a deixavam mortificada de medo.
Lisa Llibre lia para mim.
E foi a partir de sua voz que eu conheci as múmias do Egito e o rio Ganges, na Índia, ao mesmo tempo em que desbravava, com destemidos cavaleiros, territórios míticos, outrora inventados.
Tudo o que a pobre garota me pedia era que eu lhe preparasse uma xícara de chocolate bem quente – e cheia –, antes de começarmos uma nova história. Na cozinha cavernosa e escura, Lisa jogava o cabelo louro-sujo para trás do tubérculo que lhe atrofiava as costas e se debruçava sobre a mesa. Sobre a comida.
Hoje penso que a pobrezinha usava toda aquela situação como simples desculpa para abocanhar algo. Como já lhes disse (e peço perdão ao leitor caso esteja sendo repetitivo em demasia), tudo o que vi na residência dos Hemersonn foi frio e fome – fome assoladora e presente.
Em uma de suas muitas visitas à minha casa, Lisa revelou-me que, de fato, o lugar mais confortável e acolhedor daquele lugar era o porão.
Era lá que ela se refugiava. Oculta sob camadas e mais camadas de lençóis velhos a guisa de tenda, a garotinha lia suas histórias.
E se permitia sonhar.

† † †

O Primeiro Livro:
Às vezes os livros eram da biblioteca. Todavia, um deles fui eu que lhe dei.
Um excepcionalmente especial.
O repertório de histórias encantadas de Lisa estava acabando, de modo que, ao vê-la voltando para casa em mais um fim de tarde de junho, com as narinas avermelhadas e a corcunda congelada, convidei-a a entrar.
O presente a esperava sobre a mesa nodosa da cozinha.
Capa de couro vermelha mole e desbotada, com uma fivela dourada servindo de fecho. Páginas amareladas recendendo a mofo. Caligrafia do título preta e inclinada. Manuscrita.
Lisa não acreditou que aquilo era para ela. Um presente, imagine! Perguntou o que eu iria querer em troca. Sabina a havia advertido contra velhos tarados e golpistas. A garota achava que saberia se defender – se precisasse.
Voltou para casa mais contente naquele dia. O sorriso que endereçou a mim do outro lado da janela não foi mais um reflexo do conformismo. Ela estava realmente feliz. Ganhara seu primeiro livro. O primeiro de muitos. Aquele que mudaria para sempre a sua vida...
Não contei a ela como adquiri o livro, naturalmente. Eu não o tinha trocado por dinheiro, como as pessoas comuns geralmente fazem. Mas eu não era uma pessoa comum.
Eu era Wagner Abucater, veterano de guerra.

† † †

Uma Menina Fiel e Um Péssimo Fritador de Ovos:
Quando Lisa bateu na porta enodoada de minha residência, naquele sábado de 1961, eu já sabia a razão da visita.
O livro estava fortemente preso sob seu braço raquítico. A fivela da capa brilhava para mim como mísseis sendo atirados contra costas virgens. Um zumbido surdo. Pausa. E depois destruição.
– Bom-dia, Lisa – cumprimentei-a como sempre fazia.
Ela vinha sempre aos sábados. Era quando não tinha aula.
– Veio me contar uma nova história? – perguntei, enquanto colocava o leite para esquentar no fogão incinerado. O móvel doméstico já havia entrado em combustão duas vezes anteriormente, enquanto eu tentava fritar ovos.

Pausa para nota: Nunca soube fritar ovos!

Lisa continuou silenciosa, a um canto. Levando em consideração esse hábito seu, é possível afirmar que seria uma boa soldado. Aproximei-me dela e desferi-lhe um peteleco no nariz diminuto com dedos rugosos. Consegui despregar-lhe um sorriso.
Foi então que ouvi o que jamais esperara em nenhuma de suas visitas.
– Hoje, eu quero ouvir uma história!
Olhei-a por um breve momento.
Eu só conhecia uma...

A xícara de chocolate numa das mãos, Lisa levou a outra até o meu joelho estagnado.
– Eu senti! Eu senti! – gritou de admiração seguida de assombro. – É tão estranho! E durinho. Parece uma pedrinha. Sabe, daquelas que a gente encontra perto do rio.
– É uma bala, Lisa – segredei-lhe, abaixando a voz para parecer mais assustador.
Contei-lhe dos tempos que tinha combatido na Primeira Guerra Mundial. De tudo que vira (bem, de quase tudo – não queria assustar a menina), e dos sons que ouvira. Ah, aqueles sons. À noite, quando me deito (não para dormir, obviamente), ainda consigo ouvir os zumbidos na minha cabeça – juntamente com o grito de órfãos perdidos e mães sem filhos.
– É por isso que o senhor tem só a metade do nariz? – perguntou-me ela, sorvendo chocolate quente, o dedinho levantado graciosamente.
– Sim – ciciei numa voz baixa e afunilada.
A garota pousou a xícara sobre o pires, no braço torto da poltrona, antes de apalpar o que restara de um nariz destruído pelos estilhaços de uma bomba. Era a terceira vez que Lisa fazia isso. E em todas as três eu pude ver um certo ar de cumplicidade em seu sorriso.
Eu sabia como era conhecido na rua. Como as crianças me chamavam. E ela experimentava a mesma sensação que eu, também. Numa quinta-feira modorrenta de dezembro do ano anterior, Lisa esmurrara minha porta, chorando. Estava coberta do que outrora foram ovos chocos, urina e cocô. Disse que alguns colegas da escola tinham feito aquilo. Que a haviam surpreendido numa esquina sem movimento...
Afirmou-me, enquanto eu tentava tirar o grosso da sujeira, que a cara de nojo que eles tinham feito ao olhar para a corcunda dela era pior que todo o resto. Não são muitas as crianças de oito anos que carregam um pequeno morrote sobre as costas por aí, para onde quer que vão.
– Sabina vai me matar! – lamentara-se tristonha, antes de ir embora.
O odor pútrido continuou azedando a minha cozinha pelas duas semanas seguintes.
Mas valeu a pena: a garota não estava mais chorando, quando saiu dali. Pelo menos não da mesma forma. Os olhos mareados eram por causa do mau-cheiro.
– Hmm, bem... – disse. – Já contei minha história. Agora é a vez da sua.
Quando disse isso, Lisa desceu do meu joelho bom e escorregou para fora da poltrona desbotada. Observei, não pela última vez, como seu corpo parecia pequenino em contraste com a parede ao fundo.
– Parece aflita.
Lisa ensaiou um sorriso despreocupado.
– Ah, não. É que estive pensando em algo.
– Conte-me!
– Os milagres existem, não é? – perguntou inesperadamente.
Eu nunca tinha debatido “assuntos profundos” com a criança Llibre até aquele momento, de modo que é imaginável o quanto fiquei surpreso.
Gaguejei. Limpei a garganta três vezes, tentando tomar ar. Cocei os fiapos de cabelo ralo que sobravam dos lados de minha cabeça. E finalmente disse:
– Sim. Acho que existem. É isso que os padres e pastores afirmam, não é?

Pausa para nota: A família de Lisa era protestante. Não acho que isso seja realmente importante, algo que deva ser obrigatoriamente relatado; contudo, é melhor pecar pelo excesso do que pela omissão.

– Você não acredita – vomitou ela, e aquelas palavras foram como mil bofetadas para mim.
Pensei ter presenciado o primeiro comentário maldoso de Lisa. E isso seria absolutamente normal. Afinal de contas, essa nossa amiguinha sutil faz parte da condição humana: a maldade.
Estava enganado.

Respirei fundo mais uma vez. Eu não me considerava propriamente um ateu. Só não estava em condições de acreditar em Deus naquela época, ou em Alá, Buda, qualquer divindade que fosse.
– Eu acredito – tornou ela, os olhos serenos espiando o poço profundo de minha alma. – E considero o senhor como um. Sobreviveu à Grande Guerra. Tem uma bala alojada no joelho e ainda assim consegue andar... mancando. Perdeu metade do nariz, é verdade, mas aqueles estilhaços poderiam ter atingido um olho seu. Ou os dois...
Parou de falar hesitante, e o silêncio procedente à voz nasalada de Lisa pareceu-me sepulcral. Coçou a ponta do nariz, ingenuamente.
– Você ouviu isso na igreja, Lisa.
Bebericou o chocolate por alguns segundos, silente.
– Não. Na aula dominical eu aprendi que fé é crer naquilo que não podemos ver, tocar ou sentir. Você não se enquadra nisso. É diferente.
Pensei em Magda. Em Pedro. Em Lúcia e em Nuno. Decididamente, eles não faziam parte de um milagre, embora eu não pudesse vê-los, tocá-los ou senti-los novamente – ainda.
– Só um milagre pode me ajudar agora, Seu Wagner – disse ela. E vi que gotículas cristalinas se formavam nas bordas de seus olhos. – Por isso, os milagres têm que existir. Eles têm.
– Lis, querida, acho que já está ficando tarde. Seus pais ficarão preocupados com você – falei clara e pausadamente, os olhos marejados. – Acho que é melhor você ir andando. Já terminou seu chocolate? – tomei a xícara de suas mãos. – Amanhã você volta, sim?
Ela continuou parada ali, evidenciando sua pequenez.
Um galho bateu na vidraça de uma janela lá de cima, em algum lugar.
Uma lágrima atravessou um rosto jovem.
O cuco badalou indolentemente.
– Lisa, vá embora!
Passos.
Ouvi a porta bater e depois tremer, no hall de entrada.


Eu não sabia que Lisa tentava me pedir ajuda.

Segunda parte | Ultima parte

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Junho/Milho

Junho/Milho

           Depois de muito tempo sendo sugerido, finalmente foi escolhido o milho, como tema do mês. Um tema desacreditado por muitos, inclusive este que vos fala, mas que rendeu textos magníficos e, sem mais delongas, vamos a eles.
           Primeiro, o Huirian um dos nossos mais queridos poetas, "Ouro de Palha" para se ler na calmaria do campo, e "Amor à Vinagrete" para se ler nos agito da cidade me apaixonei por ambos, e por isso recomendo suas leituras.
           Sobre "O Apanhador", texto de nossa querida Dine, deixarei que outro de nossos autores comente, pois não saberia fazer melhor: "Eu gosto quando você escreve dando essa vida aos seus personagens, salvando-os nas entrelinhas, porque eu me vejo em Nôx, querendo ou não você sabe nos representar. Suas palavras cativam e seu enredo é sempre fabuloso, mesmo mesmo."
           E é com muitíssimo prazer que apresento textos de dois dos melhores autores que conheço e que decidiram prestigiar nosso projeto com um texto uno dos dois, "Visconde" ou "Visconde", que pode ser encontrando no Blog da Erica Prado ou do Lucas Rodrigues, como preferirem.
           Mais um mês e um tema se passaram e outros tantos virão, se quiser participar, fique a vontade para nos procurar no grupo, e se quiser ajudar fique a vontade para divulgar postagens desse blog ou de qualquer um dos participantes, ou ainda curtir a fanpage, que em breve trará conteúdo exclusivo do céu.

domingo, 2 de junho de 2013

Céu Literário

Céu Literário

            Céu Literário é uma iniciativa que visa incentivar a escrita entre jovens e divulgar estes textos.          Primeiramente, é escolhido um tema mensal pelos blogueiros envolvidos, o que é feito em duas fases: Primeiro um tópico é criado no dia dez do mês para que sejam sugeridos temas. Após isso, no dia 20, esses temas são colocados em enquete aberta para todos os membros do céu literário. Enfim, dia primeiro, o mais votado é escolhido.
            Com o tema escolhido, resta escrever. Cada um pode escrever o que bem entender, nos mais diferentes formatos e gêneros, desde que tenha a ver com o tema central.  Os textos, depois de escritos e publicados, devem ser linkados num tópico que é criado todo dia primeiro, para que os outros escritores tenham facilidade em localiza-los e poder linka-los no final de seus próprios textos.
            Dessa forma, cada escritor ganha diversos links externos permanentes, e visitas de leitores dos mais diferentes blogs, além do grupo do céu literário funcionar como um lugar para os escritores se conhecerem, marcar promoções e etc.
            O mais importante a ser dito do Céu, é que ele é para todos que o quiserem. Sintam-se convidados a fazer parte desta iniciativa, mesmo que apenas curtindo nossa fanpage.

Maio/Silêncio

Maio/Silêncio

             Ah, maio! Chega o mês das mães e das noivas com a escolha de um dos temas mais abertos do nosso querido projeto, o Silêncio. Nossos queridos escritores procuraram explorar o máximo de suas vertentes, como veremos abaixo.
             Comecemos por nosso querido Huirian, que marcou presença duas vezes nesse mês.comecemos pelo seu ultimo Mute my happy, onde nos traz o silêncio forçado, em seu lado mais macabro.  E no primeiro, nomeado ironicamente de Shhh, traz o silêncio necessidade, tão conhecido de todos nós.
              Depois vem Felipe Trevisan, com Destom., onde traz o silêncio poesia e o silêncio questão, com a excelência de sempre. Nossa querida Mara também marca presença neste mês, com Colors of Silence, que vem com o silêncio literal, em um texto fabuloso, que traz o horror mais simples, aquele que não te aterroriza, mas incomoda silênciosamente.
               Ainda no silêncio literal, surge Amanda Botelho, com suas belas palavras cria um mundo inteiro para o tema, em Vale do silêncio, retomando, de certa forma, o tom macabro do nosso primeiro texto. Através do Limbo dos poetas, Aline Jesus brilha em sua primeira aparição no céu, sofrimento e realidade em Silêncio em três atos. Do mesmo blog de Silêncio em três atos, Carta sobre o silêncio endereçada àqueles que não sabem o que falar, de Érica Prado.E por último, o meu texto, conto poético e poesia em prosa, leiam-no aqui.

               Se você deseja participar ou quer conhecer o projeto mais de perto, nos procure em nosso grupo ou em nossa fanpage.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Abril/Mudança de Estações

Abril/Mudança de Estações

           Com o dobro de textos que março, chegou abril com a escolha de um tema ue ja estava em pauta desde o outro mês: as mudanças de estação. Comecemos pelo meu texto, sobre humanas (d)e asas e uma das mais belas trocas de estação, depois o Huirian traz em seu universo auxiliar minha segunda estação do ano predileta em Outono.
            Para fechar, as excelentes autoras Dine e Mara trazem, respectivamente um conto que mistura as estações, cigarro e a morte magistralmente  em Dos meus pés frios e o sombrio, que nunca pode faltar no céu, vem durante a bela transformação do inverno em primavera em The springs winters.

             Para todos aqueles que tiverem interesse em participar do projeto, acessem o nosso grupo no facebook aqui, a fanpage aqui, ou participem comentando, compartilhando e indicando, seja esta postagens ou qualquer um dos textos nos blogs dos autores do céu, nós agradecemos imensamente.

Março/Diferenças Culturais

Março/Diferenças Culturais

          Mês de março.  primeiro mês deste país que só começa após o carnaval, veio abarrotado de trabalhos e provas, fazendo do mês das mudanças culturais um mês atípico para o céu literário. Com apenas dois - excelentes - textos. Foi também o mês da implantação de um tópico de sugestões, anterior a enquete, para que fosse aumentado o número de sugestões, relevantes, para o mês seguinte. Através do tópico e da enquete, optamos por mudanças culturais como tema.
           Neste tema tivemos, inicialmente "O grito", que vem comprar dois tipos de culturas diferentes inseridas no mesmo território, e que por vezes se confundem, a do dinheiro e a da arte. Depois do Makenzo, nossa querida Nathalia, comparando nossa cultura com a que parecem viver alguns tipos que encontramos por ai, esta quase carta aberta ao ao vitimismo feminista está imperdível.

            Para todos aqueles que tiverem interesse em participar do projeto, acessem o nosso grupo no facebook aqui, a fanpage aqui, ou participem comentando, compartilhando e indicando, seja esta postagens ou qualquer um dos textos nos blogs dos autores do céu, nós agradecemos imensamente.

Fevereiro/Carnaval

Fevereiro/Carnaval

           O projeto começou, na verdade, em janeiro. Dez dias antes de fevereiro, foram inseridos os primeiros membros do céu literário, para que a votação decisiva sobre o tema fosse feita. Carnaval foi escolhido, e tal tema gerou uma enxurrada de textos.
             Os dois primeiros textos foram lançados logo nos primeiros dias, ambos do mesmo autor, Vitor Vallombroso, este que vos escreve através da alcunha de Céu Literário. O primeiro é mais uma de suas crônicas, assumidamente galhofas, sobre o Texugo mais querido de todos que encara uma missão um tanto purpurinada e pode ser conferido aqui. Já o segundo é um poema, ainda que este não seja poeta, sombrio como seus textos de prosa e pode ser lido aqui.
              Depois desses, vem o excelente Diego, com um curto conto onda mostra o lado mais escuro da festa da carne, enquanto brinca com as palavras, que pode ser lido aqui. No embalo de "Carnavaliar" vem outro poema, este do Poeta Felipe Trevisan, que é na humilde opinião desse que vos escreve, o melhor texto do mês e pode ser conferido aqui.
               Com seu modo doce e delicado, Lívia retoma o lado negro do Carnis Valles, em mais um dos seus belos textos e , ainda que eu queira falar sobre, não encontro palavras, mas o confiram aqui, vale cada segundo. E, por ultimo, porém não menos importantes, os textos de Gabriela e Iara, respectivamente aqui e aqui.
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