quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Do Jardim Morada e Da Árvore Anfitriã

Do Jardim Morada e Da Árvore Anfitriã

Daniel Henrique M. Silva



Pelas vias tortuosas e cobertas de pedras lisas ela caminhava, as libélulas, borboletas, bétulas e urtigas lhe fazendo companhia; o céu azul acima indicava-lhe o caminho. Tudo era cheio de vida e luz naquele jardim esquecido pela ganância da humanidade, lugar onde a magia encontrava sua fonte e as criaturas podiam se achegar, repletas de inspiração, para escrever suas poesias.
Os vagalumes vicejavam por entre as roseiras gotejantes, e os beija-flores abanavam suas asas um sem-número de vezes naquela explosão de cor e pólen, encontrando alimento e existência na energia que os rodeava. O ar era perfumado e calmo, como o tempo que parece congelado num sonho esquecido, onde as feições parecem borradas e as ações fugidias, quando velhos conhecidos do passado retornam, bafejando palavras sussurrantes, ininteligíveis.
Montanhas altas, de ferro e pico nevado, circundavam aquele lugar atemporal, no qual as leis naturais não faziam prisioneiros e onde a regra da morte encontrava sua exceção. A sempre-viva Mãe distribuía seus grãos entre seus muitos filhos e esperava que eles crescessem e se multiplicassem, numa sucessão infindável de reprodução.
Plantas. Animais. Humanos. Elfos. E seres naturais. Ali, todos encontravam um último-primeiro lugar de paz.
O reino mítico. O jardim encantado. O paraíso desvelado.
Aquele era o lugar no qual todos se sentiam em casa. Pura e genuinamente. E onde encontravam a parte de si pela qual haviam passado suas vidas mortais inteiras procurando. O eu.
Safira, diamante, esmeralda e ônix; de toda sorte de pedras preciosas os muitos caminhos que levavam àquele recôndito eram cobertos. E era a partir do encanto pelo brilho que os filhos de todas as eras se deslumbravam, e, cansados, começavam a trilhar a rota que as levaria rumo ao seu primeiro encontro. Seu derradeiro altar e sacrifício: para entrar no jardim, porém, era necessário que se deixasse tudo para trás, toda sua vida pregressa, suas conquistas, seus valores, para finalmente, despido, encontrar o Lugar Sacro, a Nascente Inextinguível, os Portões do Lar.
Maaylän, outrora Carmem, acabara de chegar, e como era comum, abandonara tudo aquilo que recebera em seu velho mundo – inclusive seu próprio nome. Ela se banqueteava com a visão de tudo o que seus novos olhos, cor-de-chocolate-quente, podiam abarcar: as flores do jardim, multicoloridas, que murmuravam coisas umas às outras, e se perdiam em gracejos e risinhos; a pluralidade de dentes-de-leão sendo levadas pelo vento e infestando o ar em sua dança de salão incessante; as dezenas de luzes harmoniosas – espíritos de energia e pura luz – que passeavam calmamente por entre as flores, despregando matizes de arco-íris e bolas-de-sabão na atmosfera fresca do jardim; as ninfas despidas banhando nos regatos, com suas orelhas pontudas e seus cabelos verdes-lilases-vermelhos-caramelos flutuando nas águas frescas ao sabor das muitas marolas, acompanhadas por peixes de todas as cores que exibiam corações, com o brilho das luzes de neon,  pulsando através de escamas peroladas.
Por mais que Maaylän caminhasse, ela parecia nunca encontrar o fim do Jardim. Todos os caminhos pareciam levar para um único lugar: seu centro; e todos que cruzavam seus passos pareciam muito felizes, como se nunca tivessem cogitado a possibilidade de deixar aquele lugar, e como se, assim como ela, também o estivessem deslumbrando pela primeira vez. Ali, homens, fadas e lobos dançavam cantilenas de roda, de mãos dadas, escondendo-se por entre as árvores; casais apaixonados passeavam pela vastidão inominável, recitando seu novo amor em sarais eternos de dedicação e presteza; e humanos, outrora temerosos, acariciavam bestas-feras, híbridos de águia e leão, serpente e albatroz, com toques de ternura.
Maaylän percebia a existência de algo diferente no ar. Algo que, assim como todas as criaturas vivas em volta, pulsava e consumia força – mas que, ao mesmo tempo, dava energia ao Todo. Estava impregnado em tudo, e podia ser sentido de muitas formas; através dos sons das cascatas borbulhantes; do perfume das diversas margaridas-do-brejo e dríades; do sabor do ar que perpassava línguas e narinas; através, até mesmo, do vislumbre de formas etéreas que flutuavam no tempo-espaço como dançarinos feitos de véu acetinado; e do toque de cada forma de vida que era semelhante a uma explosão de sentimentos tão ancestrais quanto à idade daquele lugar.
Mais velha, portanto, que a idade da própria Terra.
E foi enquanto experimentava aquelas sensações tão novas e ao mesmo tempo tão conhecidas, que Maaylän cruzou seus olhos com os dele – verdes como as pedras limosas que brotam fundo na terra, filhas do fogo e da matéria. Suas feições eram ao mesmo tempo selvagens e gentis. Chifres de cervo polidos adornavam-lhe a fronte altiva.
Ele sorria para ela, e seu sorriso era como o descortinar de uma janela que traz luz a uma sala vazia: trouxe o toque sutil do calor e da vida ao seu coração adormecido.
Ela descobriu, pela primeira vez, o significado de um sentimento que até anteriormente era apenas uma palavra, um nome usado para expressar verdades que, em seu mundo, não passavam de mentiras, ou partes de uma verdade ínfima, e que não era tão linda quanto aquilo que agora ela experimentava.
Seu coração explodiu numa miríade de cores, tomando a forma de um buquê de rosas ao desabrochar.
“Venha”, sussurrou ele por entre os sicomoros e as faias. “Pegue minha mão.”
E ela o obedeceu – agarrando seus dedos longos e sentindo uma parte de sua própria almessência tocando-lhe através da pele do outro – afinal de contas, por que não o faria?
Os dois caminharam por entre as árvores durante muito tempo, conversando sem proferir uma única palavra, trocando juras de amor com olhares. Ludhavor era talentoso, pertencente a uma antiga espécie de criaturas mágicas da natureza, e filho de todas as criaturas da Terra. Tinha intimidade com tudo o que habitava aquele jardim e gostava de entreter Maaylän fazendo as flores abrirem e fecharem suas pétalas, ressoando finos toques de sino, e escrevendo versos lúdicos em caligrafia belíssima e inclinada, nos caules esguios de tulipas coloridas, em nuvens repolhudas no céu, em seus fios de cabelo cor-de-ouro.
Saeron, um enorme lobo albino de olhos azuis como pingentes de gelo, era sua eterna companhia. Seguia o casal abanando o rabo de um lado para o outro. Um guardião em terras protegidas.
O passar do tempo não era contado com os ponteiros do relógio naquele jardim, uma vez que nada ali satisfazia as leis do mundo carnal. Era possível que tivessem se passado dias, meses e anos desde aquela primeira aproximação, e que tal caminhada tivesse se prolongando por uma eternidade; mesmo assim Maaylän não percebia qualquer mudança no cruzar das estações. Já era parte daquele lugar, parte de Ludhavor, seu amante.
E, antes que se desse conta de que estavam seguindo um dos muitos caminhos que levavam ao centro do jardim, Maaylän se viu diante de uma gigantesca árvore, cuja copadeira enchia toda a área à volta, espalhando-se por cima de tudo e de todos como o céu tempestuoso na forma de galhos nodosos e folhas crepitantes, uma coroa de graça; suas gigantescas raízes percorriam todo o caminho à volta do tronco por dentro e fora da terra, como um dragão marinho envolvido em um duelo.
Maaylän, Ludhavor e Saeron, assim como dezenas de outras criaturas, insetos e flores curiosas, encaravam a grande árvore, sua Anfitriã. E a Grande Árvore falou-lhes, sua copadeira reverberando. Congratulou-os por terem chegado a tempo para a Grande Festa, e deu as boas-vindas a todos e a cada um separadamente. E todos eram recém chegados, pois naquele lugar não havia contagem de tempo, e tudo era muito velho e muito novo de igual modo; tendo eles acabado de chegar ali e, mesmo assim, tendo morado ali desde o princípio dos tempos e para sempre.
Sua voz era como o ranger de galhos numa ventania, como o grito estridente de águias perscrutando as montanhas no céu ventanoso, e como o gorgolejar de águas profundas e incessantes, em lugares profundos, frios e esquecidos: mítica, profunda e muito, muito velha. E todos se colocaram de joelhos, mas Anfitriã pediu para que se levantassem, dizendo-lhes que era tempo de celebração, e que todos estavam prontos para ela.
“Mas chorem por aqueles cujos seus corações já não se lembram mais, meus filhos pequeninos”, disse ela com sua voz de galhada, tronco e raiz – uma voz que podia ser ouvida apenas pelos ouvidos do coração. “Aqueles que, embora muito quisessem, nunca chegarão a esse lugar. Aqueles que se perderam, e estão agora diante de outro jardim e outro Anfitrião”.
Ao som dessas palavras todos se encheram de medo e trevas, mas as nesgas de escuridão e tristeza logo foram varridas para longe de seus corações, visto que Anfitriã lhes convidou para dar início ao Grande Banquete, e à Grande Celebração. E todos começaram a cantar, dançar e se alegrar, pulando ao redor da Árvore Ancestral de mãos dadas, saudando sua sabedoria milenar e sua persistência durante todas as eras da Existência.
E aquele foi um grande dia, no qual homens, animais, plantas e criaturas de todas as lendas, desde o fauno das florestas à fênix das longínquas pirâmides, se regozijaram e confraternizaram, vivendo eternamente em harmonia. E de fato esse dia ainda não se acabou e nunca acabará, pois a derradeira festa das nações é aquela que durará para sempre.

O primeiro dia e o último, unidos num único grande evento.

Além deste país imaginario, podem conferir as palpáveis Veneza e Índia, respectivamente de Mara e Vitor.

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